domingo, 5 de outubro de 2008

Da esquerda para a direita

Por Anna Carla Ribeiro*

Ele tem o dom de passar a ponta o lápis na minha nuca esbranquiçada. Sempre percorre pouco menos de cinco centímetros, da esquerda para a direita. Passa por todos os fios do meu cabelo e depois volta pelo mesmo caminho, como quem faz caligrafia. Eu automaticamente paraliso. E me arrepio. E viro um gato domado. Mansa, mansa.
Vou começar do começo.
Foi a primeira vez que eu vi alguém de calça marrom fora do ensino médio. Ele se aproximou, disse que me amava com os olhos, e eu respondi com a sobrancelha direita levantada “Porque diabos tu tens uma calça marrom?”. Ele deve ter se achado bem interpretado, pois quase fez minha cintura perder dez centímetros com aquele abraço. Nenhuma palavra. Só o barulho dos estalos da minha coluna.
Durou pouco mais de dois minutos, tempo suficiente para tocar a saideira. Não pude ouvir. Minhas mãos o levaram para longe, meio metro, e meu rosto enrugado berrou incontrolavelmente.
_ Eu to cansada, sabia?! Você, sua calça marrom, chegam aqui do nada e acham o quê? Que vão conseguir algo mais do que beijinhos? Escute aqui, ô chocolate ambulante, não vou mais ser subestimada. Eu sou perita em práticas canalhas e ainda faço dependência em “Fuja dos Conquistadores Gratuitos”, sempre mais em conta do que os baratos.
Sorriu. Me mostrou toda a sua arcada dentária como se eu estivesse à procura de um canal. Tive vontade de depilar todos os pêlos do seu corpo com cera fria, incluindo aquele cabelo fininho e caído na testa. Foi quando ele tocou na minha franja. E eu virei estátua. Parei de pensar, de ouvir, de ter qualquer expressão. Minha sensibilidade se resumia aos leves toques do seu indicador, revezados com o polegar, da esquerda para a direita.
Foi aí que tudo se perdeu e se achou, simultaneamente. Achei a cura dos meus berros, das minhas dívidas, das minhas dúvidas. Que se dane o banco, o trânsito, a dor no peito, os conselheiros, as éticas, as experiências alheias e as minhas convivências frustradas. Que se foda os hinos, as cartomantes, as esmeraldas, os signos, os astros, a praia, a lua, os maias, incas e tupiniquins. Que se exploda até mesmo aquela calça marrom. Perdi a sanidade, a vontade própria, o controle. Vai, agora pode me levar. Para minha casa, para tua casa, para tua vida. Ou para marte, para o carro, para a padaria. Que diferença faz?
Ele me levou para casa, a minha. Sua pupila esquerda me contou que viajou recentemente para Budapeste e que estava à procura de novas melodias de blues. Nenhuma palavra. Minha pálpebra tentou, sem sucesso, me fazer ficar invisível. E ele ria. E eu tinha medo de chorar.
E entrou na minha vida como a bailarina entra no palco, tomando conta de todo o espetáculo. E me fez assistir de camarote a minha própria adestração. E mudou os meus assuntos, minhas pautas, meu jeito de andar pelas ruas. E não importa mais nem mesmo o inferno enquanto eu puder, no fim do dia, esquecer até mesmo de mim ao debruçar a minha cabeça nos seus joelhos. E então finalmente ele irá tocar levemente na minha nuca, da esquerda para a direita. E no final de cada show, eu levanto e bato palma.

* Texto publicado em janeiro de 2008

2 comentários:

Bruno disse...

Já tem um tempo considerável que leio os textos de vcs. Não canso de me divertir quando leio coisas do tipo: " Eu sou perita em práticas canalhas e ainda faço dependência em “Fuja dos Conquistadores Gratuitos” ". Sei lá, soa engraçado. É como manter maços de cigarro na bolsa quando se esta tentando parar de fumar. Os canalhas atraem, os canalhas são sempre melhores e infinitamente mais apaixonantes. Não pelo fato de serem canalhas, no verdadeiro sentido da palavra, mas são comedidos. Não dão demais. Não ligam quando vc espera uma ligação. Refugam os beijos quando sua boca pede por um. É isso. Mulheres não gostam de extremos. E os "canalhas" são, em sua maioria, perfeitamente ponderados. Os bonzinhos rodam rápido. Os safados rodam um pouco depois. Mas sempre rodam. Os canalhas marcam. São pra sempre.
Enfim, é perda de tempo tentar se blindar contra ataques "canalhistas"... a atração é genética, é feminina.
Nada pessoal han ? Just a comment.
O texto, pra variar, foi ótimo.

6 de outubro de 2008 às 03:23
Carol Barata disse...

Adoro esse texto. Lembro de ter lido ele no teu flog algum tempo atrás.

7 de outubro de 2008 às 09:31

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