segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Memórias de uma velha triste

Por Moara Brasil

Eu tinha 84 anos, a minha vida havia se tornado a rotina mais repugnante que eu não tinha planejado. Todos os dias, sempre a mesma rotina. Acordava seis horas da manhã, mas não porque eu queria acordar, era porque não conseguia mais dormir como dormia antes, na época em que tinha vinte e pouco anos. Tomava meu café  com algumas bolachas de água e sal. E lia as notícias principais do jornal local, mas eu não tinha mais a vontade de saber de notícias da minha cidade. Assistia diariamente as mesmas novelas com os mesmos roteiros, depois de um tempo comecei a achar que a Globo havia caducado, tudo era sempre um dejavu. Eu poderia mudar aquela rotina, eu poderia ainda ter sonhos e ter projetos, mas eu morri sem saber que já estava morta.

Eu andava muito cansada, exausta, velha, irreconhecível. Um dia eu chorei como uma menina na frente do espelho, eu não me reconhecia naquele rosto cheio de rugas e tão diferente daquele de vinte e poucos anos. Eu não gostava de envelhecer,  era uma tortura! Se eu pudesse nem viveria aquela minha velhice medíocre.

Tudo o que eu tinha na vida era uma diabete e a solidão. Mas eu odiava a diabete e para me vingar comia chocolate escondido da minha filha, todas as noites, quando ela ia dormir.

A minha filha tentava cuidar de mim para eu não morrer, para eu viver mais um pouco ao lado dela. Eu tomava remédio controlado por ela. Mas eu estava amarga, eu não queria mais aquela vida, e nem queria dar trabalho para ela, então acelerava a chegada da minha morte física, porque a mental já estava sepultada.

O que uma velha como eu havia conseguido todos esses 84 anos? Nada. Nada de digno, nem para dar a filha que mais amo. A minha filha que pagava o aluguel da casa. Os livros, a estante, tudo era da minha filha.

Naquele domingo eu acordei, coloquei meu vestido e passei batom na minha boca. Me senti nova, tão nova que ao olhar no espelho do banheiro sorri como nunca mais havia sorrido. Meu coração palpitou. Lembrei do meu velho, quando a gente se conheceu no sítio do meu pai. Eu, com o vestido pink e ele com aquela calça xadrez, nós dançamos a noite toda e ficamos embriagados, e muito felizes. Mais uma vez meu coração palpitou. Eu chorava como uma moça boba.

Meu corpo todo doía, mas eu consegui andar até o sofá. De repente a minha filha apareceu e perguntou se eu estava bem. "Não, meu corpo todo dói". Senti um formigamento estranho e um enjôo que me deixava fria. Doía muito e vomitei. Tudo ficou embaçado, a minha filha me sacodia desesperada e eu ouvia a voz dela bem longe, como eco, como um sonho, a dor já não mais existia. Eu me despedia daquela vida, bem ali, naquele sofá, num verão qualquer daquele domingo apático e chuvoso de julho.

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