segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Em greve

Por Anna Carla Ribeiro


 


 


Apagou o cigarro no copinho de café, como nunca foi de costume. Parou um pouco pra pensar em quantos acontecimentos em menos de um mês e meio. Tudo mudou: a rotina, a convivência e até mesmo os costumes refletidos numa bagana de Marlboro Light apagado num copinho de café, preto e com açúcar. Ela nunca foi de ingerir fumaça, gordura e cafeína com tanta freqüência. Ela nunca foi de muita coisa, aliás. Quem é essa daí, trabalhando que nem louca, tentando entender o que se passa diante das novas pessoas que apareceram em sua vida? Ela se olhou com calma, um pouco de ardor nos olhos. É o cansaço.


 



Gostou do que viu. Sentia-se tão estafada com aquela antiga menina de um mês e meio atrás que nem chegou a sentir saudade. Talvez do tempo livre. Só talvez. De uma cervejinha de vez em quando. É, isso sim. Mas não vem ao caso. Percebeu ter se tornado justamente o que havia projetado. E riu como se tivesse fazendo um auto-agradecimento. Agora é até difícil falar dela. Mudou tanto que nem sequer tem do que reclamar. Defeitos, dificuldades a superar? Tem vários, cada vez mais em ordem crescente. Não vem ao caso outra vez. Isso nunca vai acabar, ela sabe, ela gosta, ela quis assim. Essa péssima mania de odiar ver o mundo parar, desde criança, não é à toa que não consegue parar de roer as unhas.


 



Esticou as pernas, sentiu o bafo quente típico de domingo que aumentava ainda mais essa mistura de excitação pelo que ela não conhece e a pressão pelo mesmo motivo. Umas bostas. Tanto equilíbrio tirou dela a inspiração. Já não suportava mais seus antigos textos metidos a uma espécie de confusão pós-teen e nem sabia mais o que escrever. Reclamar do quê, dessa vez? Da alta tarifa da atual operadora de celular? Da rotina maluca que ela odiava e amava ao mesmo tempo? Do medo que ela sempre teve e que talvez nunca deixará de ter? Quanta chatice!


 



Cansou-se de reclamar, não consegue nem ouvir blasfêmias de outrem, coisa do seu ponto forte. Não tem mais paciência pro que não é preto no branco, pro que não é claro, visível e inteiramente entendido. Perdeu aquilo que mais queria ver florescer: sua capacidade imaginativa de criar problemas e situações registradas em cartas e em letras verdana no Word. Em compensação, largou caneta, teclado, cadeira, monitor e foi buscar a plenitude no que é de verdade.


 



Enquanto estiver em total equilíbrio com a realidade, estará em greve da sua tão bem sonhada fantasia.

5 comentários:

moara disse...

não fica de greve nãaao!

amei o texto, estava com saudades.

15 de setembro de 2008 às 19:28
vivi disse...

O impressionante é perceber que com uma rotina esmagadora, os problemas as vezes tomam seus verdadeiros lugares. Alguns, percebemos em vista de várias situações, que são pequenos, outros porém, passam a aumentar por conta da ausência de uma anitga rotina. Rotina que nós sempre reclamamos nas nossas mesas de bares, mas que agora temos consciência da falta que faz. Amei o texto. Me encontrei muitas vezes dentro dele. Saudade de ti. Beijos

17 de setembro de 2008 às 05:26
cruela cruel disse...

olá. há tempos não leio um post tão bom... e eu também não tolero o que não é preto, branco, simples e claro.

envelheci.

17 de setembro de 2008 às 10:36
carolinabarata disse...

Esteja em greve o quanto puder/quiser.
As fantasias sempre te esperarão.

:)

18 de setembro de 2008 às 07:07
Lucas Paolelli disse...

No fundo, acho que é essa crueza, essa simplicidade que todos nós buscamos.

Talvez seja por isso que a gente reclama. Mas isso tudo diminui depois que a gente se toca de que as coisas são bem menos complicadas do que a gente pensava outrora, são muito mais "preto no branco".

Nunca mais mesmo tínhamos lido algo teu. Tá bacana, parabéns. Ah... e bom ter te revisto na quarta, huhu

Um beijo.

19 de setembro de 2008 às 05:13

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