terça-feira, 25 de março de 2008

Confidências do cego Narciso

Por Anna Carla Ribeiro

Ela me disse “sim senhor”. Saiu por aquela porta com serenidade. Esperei cinco minutos contados no relógio e não ouvi o som. Nada do barulho de gasolina velha em contato com o motor que o seu carro fazia ao dobrar a minha esquina, nem o som estridente do meu interfone que acordava a casa inteira mais a do vizinho, muito menos o meu antigo toque de celular. Ela sempre voltava.

Eu morria de rir das fraquezas dela. Entrava no quarto feito um tufão, me olhava com os olhos de uma criança somaliana e me perguntava por quê. Fingia uma superioridade que ninguém, além de mim, duvidaria ser natural. Então, de pirraça, eu a atacava. Eu sabia que ela era a vítima. Mas também sabia que era eu o juiz.

Quando saía levava consigo todo o ar. O ambiente passava imediatamente a sofrer as conseqüências da baixa pressão atmosférica. Mas ela sempre voltava, estarrecida e envergonhada pelo fim do seu teatro. Me olhava pelo canto do ombro com olhos de artifício e me absolvia dos crimes que eu nunca pedia perdão.

Ela tinha aqueles olhos de quem precisa ver o mundo sempre fulgurante. Sempre, sabe? Sempre faiscantes, como se as cores e as formas do mundo fossem se apagar e por isso queimavam. E eu tentava transmitir a paz que aqueles olhos tentavam por si só decifrar.

Ela falava sobre o futuro, o nosso futuro, e transpirava a poeira. E planejava tantas viagens, mas tantas viagens, que seus olhos reluzentes viajavam sozinhos para a tal da outra dimensão. E eu achava graça dela, sempre tão linda para os meus olhos, e sempre tão distante para os olhos de outrem. Eu sabia. Os olhos dela flamejavam só pra mim, só pra mim. E por isso me sentia o último rei dos Noldor na Terra-média.

Sempre se rendiam aos meus desejos. Era vício químico, físico e incorpóreo, daqueles de fazer o estômago pensar mais que o cérebro. Tanto brilhavam que ofuscavam o meu próprio brilho. E me faziam sentir inveja dos desejos que me provocavam, das delícias que me proporcionavam. Roubavam-me do meu próprio espelho.

Foi então que eu olhei pros lados e dei aquele sorrisinho denunciador. Era uma graça. Precisava colecionar globos oculares porque estava cego de tanto egocentrismo. Mesquinharia. Esqueci que por debaixo dos olhos dela moravam medos, anseios, seios. Malandro é malandro, né? Eu a olhava, e mesmo cabisbaixa, ela trançava seus braços nos meus e retribuía o olhar.

De tanto procurar, a perdi. Não só os seus olhos, como os seus mimos antes de dormir, o seu jeito de menina ao me dar bom dia, a sua preocupação com a minha demora. Eu perdi. Perdi os olhos de uma mãe, irmã, melhor amiga. Perdi a melhor amante e as suas brincadeiras de dentro do carro. Perdi o enroscar dos meus pés com os dela naquelas noites de chuva. Perdi porque sou um embusteiro bem nascido.

E agora vejo os seus olhos refletindo a leveza de uma pena. Que pena! Cintilam pra todos, pra tudo e pro nada, como se estivesse apaixonada por qualquer reprodução visual. E eu sinto a falta dos nossos finais de tarde felizes, do caminho que percorremos juntos, das praias, das ruínas. Sinto necessidade do mau humor que ela fica quando bate a fome e da minha falta de sensibilidade que sempre a faziam chorar.

Como me dói ver sorrisos brandos e olhares indecifráveis olhando o seu diamante, a sua leveza, o seu sorriso antes mesmo de dar aquele seu sorriso, de tirar o chapéu. Me dói porque a perdi pro mundo, pra tudo e qualquer coisa que possa vir a acontecer. E me deu tanta azia quando finalmente seus olhos cansaram e me disseram “adeus”, que os meus começaram a brilhar. De lágrimas, meu caro, de lágrimas.

4 comentários:

Carool Barata disse...

Nossa, Anna...
Esse texto tá muito, muito, muito bom. Adorei.
Sempre gosto dos teus textos e dizer que identifico é redundante. Talvez os maldosos diriam que somos todas "farinha do mesmo saco" e eu até afirmaria isso, porque é impressionante como consigo me identificar contigo por meio dos teus textos. Ah, e pelas dancinhas "peganinguém" no meio dos lugares alternativos de Belcity tmb. hehehe

=o**

26 de março de 2008 às 07:58
lora disse...

Ah, amiga, cada dia melhor. Muito bom este, viu?
cheio de verdades e tão parecidos contigo, comigo, com elas.
Eles nunca percebem quando tão perdendo..hehehehe

:***

Quero mesa e conversas de bar com você

27 de março de 2008 às 14:31
moara disse...

já estou ansiosa para o próximo texto.

27 de março de 2008 às 17:49
Evandro disse...

muito bom seu texto lorão, estou adorando todos e ficando cada vez mais seu fã, parabéns =*

30 de março de 2008 às 17:59

Postar um comentário

 

©2009ohvarios | by TNB