quinta-feira, 27 de março de 2008

Lembranças da querida velha

Por Moara Brasil

A lembrança mais antiga que tenho de ti, querida velha, é lá do Marex, quando eu cheguei de Santarém com a mamãe e meus dois irmãos.Devia ter uns 6 ou 5 anos, em 1989, faz muito tempo, lembro perfeitamente da mamãe carregando o Nelinho e segurando a mão do Pedro, e eu morrendo de medo de jatinhos. Papai era locutor de rádio, e não teve como voltar com a família para Belém. Lembro que deixei a minha boneca preferida, uma de borracha velha, a Julieta, e pedi por telefone que papai trouxesse de volta pra mim, mas espero até hoje por isso, ele nunca trouxe a Julieta. A boneca velha se perdeu por Alter-do-chão.

Mas o assunto é a senhora, querida velha Elba. Morei tanto tempo ao seu lado, e odiava ter que acordar sete horas da manhã todos os dias para ir a única Igreja do bairro, rezar com um bando de velhos enjoados todo o “Pai Nosso”. E depois, ainda ter que ajudá-la nas coisas da casa, brincar com os primos e dormir cedo, bem cedo. Na minha infância, a senhora foi inevitável, e marcou bastante. É porque eu a achava muito chata e rabugenta. Falava mal de sua personalidade forte e de velha, esse gênio intragável. E de reclamar sempre de algo, e de coisas que meninas naquela minha idade normalmente deixam de fazer, como escovar sempre os dentes ou assistir a programas impróprios pra mim e tomar banho nas horas erradas, segundo a senhora.

Na sua casa, querida avó, lembro de um cheiro de casa antiga e de mato muito forte, o jardim era bem florido, e naquela época, ele parecia enorme, gigante, quase uma floresta, eu e meus irmãos brincávamos naquela jardim e nos realizávamos terrivelmente. Morar no Marex era quase morar no interior, era muito longe do centro de Belém. Mas o mais legal era sentar naquele banco de madeira que ficava no portão da casa, sentar quando o sol estava indo embora e a lua dava boas vindas. E olhar para o asfalto que ficava pink com as flores de jambos e aquelas sementes vermelhas.

Da cozinha, recordo perfeitamente da canja de galinha e de uma sopa de mocotó que a senhora cozinhava muito bem. Talvez seja por isso que eu não resisto a uma canja até hoje. Eu amava. Nossa....também lembro de uma feijoada com ovo frito e carne assada, mais alface e arroz. Hoje, também meus pratos prediletos. Uma delícia.

Quando acordava cedo para ir na padaria comprar pão quentinho, a melhor parte era tomar café contigo sempre reclamando com voz de velha “não fura toda a margarina com a fáaaca menina”, “não coloca tudo isso de chocoláaate”, “ta pensando que nasceu em berço de ouro?”, “não quero ninguéeeeem comendo meu cream cracker ein”. E eu comia o cream cracker, escondido da senhora como vingança, e tu nem percebias, hahá.

O seu quarto era bem misterioso, sempre achei que por ali atrás daqueles armários barrocos escondiam-se espíritos sacanas. E quando olhava para o espelho do banheiro, mais o meu medo aumentava ao adentrar no seu quarto toda vez que tu pedias um maldito analgésico. Cheguei a ver alguns seres de branco por ali.

Eu recordo também daquele quadro imenso, acho que era peruano, de pano, com uns desenhos de cidade, não lembro direito. Cadê ele? Sei que marcou, pois ficava pensando “nossa, como alguém podia desenhar tudo isso com linha de crochê?”. Com medo de fazer qualquer pergunta pra senhora, fiquei na curiosidade e até hoje não sei a origem desse quadro.

Mas, a melhor parte de morar na sua casa era o Natal. Eu amava o Natal, não só pelos presentes, mas pela reunião com todos os primos, todos ainda muito crianças, rezávamos juntos e comíamos a melhor comida feita com amor de cada mãe, filhas da senhora.

Estou lembrando de tudo isso, querida vó, porque apesar da minha ausência na sua vida neste momento em que arrumamos desculpa para qualquer compromisso familiar, quero lembrar o quanto a senhora é importante. E que eu irei na fisioterapia contigo por essas semanas.

E, mesmo com essa sua cabeça de velha e teimosa, que eu tentei mudar e critiquei por muito tempo, quando a primeira frase que a senhora falava ao abrir a porta de sua casa era “tu aqui?Olha, eu não tenho comida ein!”, eu te amo e sinto orgulho de ser sua neta. Uma mulher que teve quantos filhos? Sabe que sempre me perco. É porque sou lesa mesmo. Dez? Para ter tudo isso só podias ser uma fortaleza. Criou-os de acordo com a educação que a senhora herdou de outras gerações, e criou-os na marra, na palmatória, e com uma caixinha cheia de tabus, chatices e dogmas religiosos de velhos. É, eu te amo.

Saiba que eu não admito essa doença quase “cancerígena” a qual se entregas. Essa tosse de velha que virou rotina que nos amedontra. Que não suporto o seu medo da velhice e da morte, e me pergunto, onde ficam os dogmas em que você tanto acreditava e tentou colocar na cabeça de todos nós, seus queridos netos? A velhice chega, a pele se acaba, o sangue definha, mas a mente não. A mente é eterna enquanto dure, queria que percebesses isso. E, desse um belo sorriso para a sua vida e à tudo que a senhora construiu nesses 80 anos. Porra velha, é muita vida! Conta aí. A senhora nasceu em plena Crise de 29 e ainda passou por guerras mundiais!Enfrentou ditaduras e a era digital. Não se entregue antes do tempo, sua família toda te ama e agradece por seres o ponto de união de todos nós. A querida vó do Marex, do natal, do café com pão careca e as rezas do dia-a-dia.

Por favor, volte a ser pelo menos aquela rabugenta que seus netos tanto temiam.

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