terça-feira, 17 de junho de 2008

Eu e a menina tola

Hoje eu levantei e a deixei lá, sentada no canto do quarto, como tem sido regularmente. Ela acorda comigo e me olha de soslaio, como quem pedisse para me fazer companhia no resto do meu dia. Mas atualmente, finjo que não a vejo.

0a4d6d7c72dd9fdc525cfacde8252ccecd874a64_mTomo meu banho ouvindo música alta. Saio sempre com pressa e nem sempre com um sorriso nos lábios. Enquanto ela acorda mal humorada e permanece assim o resto do dia, distribuindo coices e patadas a todos, sem muito critério. Mas eu tenho feito questão de deixá-la lá, bem trancada no quarto.

Ela buzina no meu ouvido dizendo que não é para eu comer muito porque o crescimento do meu manequim semi-obeso é tão proporcional quanto ao da inflação no Brasil. Aí eu dou a ela um foda-se bem alto, assim como o Banco Central dá aos brasileiros desesperados com medo de surtos econômicos. Ah, eu quero mais é me esbaldar em bife, arroz, feijão, bata frita e coca-cola. Peço para ela me deixar ser uma gordinha feliz.

Acho que ela se incomoda com o meu bem estar num modelito 42 ou com a minha falta de organização com a minha bolsa. Na verdade, ela se incomoda com todas as coisas pequenas e isso a cega para coisas grandiosas, entende? Ela fica de nhem-nhem-nhem atrás de mim dizendo: cuidado com a balança, com a moda, com a chuva, com o cabelo desgrenhado, com as sardas, com o palavreado, com a aparência. Pois ela me enche tanto, mas tanto, que simplesmente tenho que ceder.

Entro em paranóia e fico me analisando em frente ao espelho: a pele não é como eu queria, mas dá pro gasto. Nada que um corretivo não resolva. A silhueta não é mais a mesma? Negativo! As roupas é que ficaram pequenas. Nada que roupas novas não resolvam. Então, repito o ritual matutino: vou tomar O Banho escutando música mais alta ainda e grito, berro e desespero a pobre menina paranóica no canto do meu quarto.

Aí, ela se arrepende amargamente porque saio mais revigorada do que nunca, a fim de pegar um cinema, uma chuva, ver um arco-íris, tomar água de coco. Sei lá, saio com todo gás e ela continua andando atrás de mim, sem saber o que falar, me lembrando que o ex-namorado me traiu com uma “amiga”, que tem muito mês para pouco salário, que eu preciso fazer uma hidratação nos cabelos, que já estou mais para os 30 anos do que para os 20, que fumar mata e por aí em diante...

Então, ela apela, com os olhos amargurados e cheios de lágrimas que não mais vai me avisar. Mas não consegue calar a boca. Ela pede para eu ficar em casa vendo e revendo fotos de outros tempos com ela, porque é só aquilo que ela gosta de fazer, remoer o passado. Deve ser por isso que ela sempre, mas sempre mesmo, tem dores de estômago, enxaquecas, crises de choro ou de consumismo. Acho que essa carência absurda a deixa sempre dodói e ela até gosta porque é um jeitinho que tem de conseguir mais atenção.

A insistência dela me dá um nó na garganta e eu cedo, não tem jeito. Eu sento e fico lá, remoendo cada lembrança que ela puxa do fundo do baú. Mas sabe qual é o problema? Eu, aos poucos, estou conseguindo enterrar meus fantasmas. Enquanto ela os desencava de túmulos profundos e quase os torna múmias vivas. Coitadinha... ela faz isso pensando que eu vou leva-las para passear junto comigo. No way, baby!

O que essa menina tola e mimada, com medo de tentar, de arriscar, não percebe é que eu mudei. Tive que mudar. Eu precisei enfiar o dedo na tomada uma, duas, dez vezes e tomar choques terapêuticos deveras chocantes para saber que precisava me mudar de mim. E me mudei. Deixei essa minha parte no canto, junto com as roupas que não me cabem mais, com os amores que não deram frutos, com as falsas amizades, com a velha vida.

Eu troquei de pele nessa nova estação, me adaptei ao meio assim como um réptil. Minha energia que antes era alimentada a pilhas, agora é abastecida pela energia solar. Saio de manhã respirando fundo e soltando o ar devagar. E vejo as coisas darem certo para mim mesmo quando tudo tende a piorar.

Precisei ouvir que tenho medo de ser feliz, quer dizer, tinha. Por isso que hoje, ao sair, deixo essa minha parte amargurada das antigas relações trancada no quarto, de castigo, ajoelhada no milho. Não tenho mais paciência para a tristeza, não tenho vaga para depressão. A solidão não me anima mais.

Enterrei meu passado e só volto a vê-lo no dia de finados. Levo a menina tola para passear nesse dia, devidamente munida com um bouquet de flores do campo. Rezo para que ela fique lá, com meus demônios e assombrações. Um dia ela me deixa de vez e enxerga o quanto eu sou feliz.

3 comentários:

vivi disse...

louco o texto....

minha tese é de que pessoas que não resolvem no presente o que tem pra ser resolvido, acabam com fantasmas pra vida toda.


saudade, miguxa
=**

17 de junho de 2008 às 14:25
moara disse...

Isso é um saco quando a pessoa não percebe que a gente muda, que também abandonamos algumas coisas que pensávamos antes, que estamos mudando. Deve ser a não-aceitação de que o ser humano muda com o passar do tempo, com as lições da vida, com as idas e vindas.
Temos que aceitar a mudança, só. Difícil os outros entenderem isso, já passei por essas várias vezes.


saudades.

bjs

17 de junho de 2008 às 16:58
Lucas disse...

Baratilda e mais uma de suas jóias!

Esse tá bonito, Carol. Bonito mesmo.
FAlas da mesma pessoa, só que em momentos distintos, de uma forta sutil, mas sem se distanciar de uma marca registrada tua que é a acidez.

Firme.

Bacana ouvir de alguém, o aprendizado, a mudança (pra melhor), depois de indas e vindas, depois de umas boas "bordoadas" da vida. E é um assunto com o qual boa parte aqui se identifica, pois tenho certeza de que todos nós esamos bem diferentes.

Coitados dos que, mesmo caindo, apanhando, levantando, continuam correndo atrás do próprio rabo e fazendo as mesmas merdas...

Um beijo.

19 de junho de 2008 às 07:07

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