quinta-feira, 24 de julho de 2008

O próprio

Por Anna Carla Ribeiro


Ela já não o esperava. Fora abandonada como uma noiva no altar, logo por ele, sempre a deixando de saco cheio com as suas idas e vindas intermináveis. E por mais que tentasse, era difícil viver sem ele. Felicidade, alegria, esperança, sorte. Já percebeu que todas essas palavras são femininas? Mas sem ele, o outro lado, o lado que talvez pudesse dar vida (também feminina) a todas essas feminidades, era difícil, bem difícil.


Mas ele chegou novamente em sua casa com a velocidade de quem precisa matar as saudades. Estava mais magro, ou melhor, menos pesado. Não lembrava nem por relapso ser o grande destruidor de todo o seu chão. Agora ele abria as janelas e ao invés de estraçalhá-las, deixava o sol entrar. Ria do seu medo de aceitar tal mudança, de construir uma nova casa, dessa vez mais iluminada e com a base mais firme. Ela o convidou para entrar, mais por educação que por vontade, e ficou parada vendo a audácia daquele que de diversas formas sempre entrava em sua vida, em sua casa, com todo aquele jeito tão espontâneo que chegava a incomodar.


“Agora vai ser diferente”. Ela teve uma vontade enorme de dar uma gargalhada daquelas macabras quando ele disse isso. Ora, pere lá, meu bem! Foram anos e anos de fatos estúpidos, dores desnecessárias, mágoas que brotaram por nada e foram embora por tudo. Tudo por ele. E elas, as mágoas, continuavam ali, surgindo, crescendo, desnecessárias e capazes de realizar fatos estúpidos. Agora chega, ela precisa descansar, entende? Ele sorriu e fez menção de acender um cigarro, para ela. Ele não fuma.


Aos poucos ele foi mostrando que precisava aparecer em sua vida para ajudá-la a compartilhar a experiência daquelas coisas banais do dia-a-dia. Precisava de uma forcinha para arrumar aquela gaveta cheia de tralha, um ombro para encostar o seu pescoço cansado e até mesmo um trouxa para ouvir os seus berros de raiva. Ele precisava estar com ela o tempo todo, na hora que ela calçasse o seu salto alto vermelho, no vapor da panela que ela preparou para o jantar, no caminho interminável e quente do seu carro até a repartição.


Sem entender, ela o deixou ficar. No começo ficava ali, no canto da sala, meio desconfiada, meio sem graça, vendo ele colocar uma música nova e dançar como se fosse retardado. Ela não queria pensar, só rezava para que, sei lá, de repente, ele tomasse jeito e dessa vez não saísse destruindo cama, quarto, varanda. Se fosse para ir embora, que a deixasse assim como entrou: pela porta dos fundos e leve como uma pluma.


Passaram-se semanas e eles já trocavam palavras soltas, às vezes até piada. Aos poucos foram conversando sobre o tempo – o que passou e o que está por vir – e foram, juntos, se conhecendo. Conseguiram se definir. Ontem foram juntos ao quintal e enterraram todas aquelas tralhas feias e cheias de lamúria que ela insistia em deixar penduradas na estante. Ela não precisava mais daquilo. Era outra, agora mais forte, mais leve e até mais bronzeada pelo sol. Quando ela o encontrou, do jeito certo, na hora certa, conseguia sorrir até mesmo sem motivos. Quando ela o encontrou, o amor, o próprio amor, o amor-próprio.

1 comentários:

moara disse...

nossa! ta todo mundo na mesma vibe!
hehe!

Perfeito.

24 de julho de 2008 às 14:46

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