quarta-feira, 23 de abril de 2008

O fantasma

Por Anna Carla Ribeiro

Da primeira vez a gente nunca esquece. Naquela noite só conseguia ouvir o barulho da chuva e o sopro agudo do vento ao entrar pela fresta da janela. Era noite sem lua, sem estrela, sem cosmos, sem vida. São Pedro castigava o mundo pela sua pertinente preguiça de existir. E o mundo me castigava por essa contínua ânsia de nunca parar e querer sempre mais, mesmo quando até as formiguinhas do meu quarto adormecem.

Talvez por isso tu tenhas chegado, sem convite, mas com toda aquela costumeira expansão. Ouvi os passos largos e pesados do teu tênis velho e o balanço das antiguidades da mamãe pela tua falta de atenção. Por impulso, dei um pulo da cama e quase saí correndo encontrar tuas pegadas, se não fosse por um detalhe: estás morto e enterrado.

Não entendo porque teu fantasma veio procurar a mim, depois de tanto tempo defasado. Talvez queiras me assustar ou te vingar pelas blasfêmias e toda a minha ignorância e falta de paciência. Talvez queiras me contar um segredo, me dizer como é a vida fora da vida, ou simplesmente és solidário o suficiente pra me fazer companhia quando escuto a música que diz coisas tão profundas. Ou por não conseguir mais atingir a minha profundidade. Ou pelo ‘não’ e pela falta dele. Não sei, definitivamente.

Sei que me assustas. Vou procurar minha mãe no meio da noite pra dizer que tive um pesadelo. Mentira... Saio de casa no começo da semana porque tomei gosto pela rua. Mentira... A verdade é que eu tenho medo da tua presença, das tuas aparições noturnas, do teu cheiro que expande pelo quarto quando abro a janela. Tenho medo de não só ouvir tuas risadas e sentir a tua afundada na cama – sempre espaçosa – mas de um dia acabar te vendo por completo. Já pensou descobrir que teu fantasma é de verdade? Acabo rezando pra que realmente existas, já que a tua falsidade ideológica me faz virar uma louca em potencial com síndrome de sociopata.

Nem sempre com o tempo a gente se acostuma. De repente, teu fantasma grudou mais que meu prendedor de cabelo. Estavas comigo em cada curva, cada esquina, cada pedacinho de torta de ricota, cada piada, cada mentira, cada roupa nova. E eu sempre te reneguei, porque gosto é de coisa de verdade, que possa pegar, pôr, ver, ser. Tudo o que me soa como platônico é que nem tu, mortinho da silva!

Veja bem. Eu não entendo dos vivos, imagine dos mortos. Não sei como funcionam as aparições imateriais, os ectoplasmas, os perespíritos, a mediunidade, o céu e a terra. Nem compreendo a atração entre dois corpos, a química e a física. Sou leiga até em gravidade. A gravidade dos meus erros, dos meus acertos, das minhas decisões. Não sei, definitivamente.

E então fujo horas a fio pela estrada, fazendo curvas rápidas pra que te percas em uma delas e fiques cansado de me alcançar. Já bem longe, sinto que finalmente consegui te exorcizar. Talvez tenhamos mudado de vibração, sei lá. Caminho saltitante pela orla da praia e agradeço ao universo por sentir apenas o que é cientificamente comprovado: a chuva fininha, a areia molhada, a água salgada.

Tudo estaria perfeitamente primoroso se eu não resolvesse olhar pra trás. Vejo-te distraído, olhando pro nada, abrindo uma coca e brindando o horizonte.

Estás vivo, principalmente dentro de mim.

4 comentários:

Carol Barata disse...

Os piores fantasmas são os que permanecem dentro da gente porque não tem morte que os faça sair.

muito fofo o texto.
saudoso demais.
curti!

=o*

23 de abril de 2008 às 11:51
moara disse...

Que texto anna!
Eu morro de medo de espíritos, teve um tempo em que eu não conseguia dormir no meu novo quarto, porque ouvia "coisas". E nessa época tinha muitos pesadelos. Sonhava com diversos tipos de morte e mensagens estranhas, como se alguem quisesse me avisar de algo mesmo. Estava tão pertubada, que não aguentava mais fechar os olhos depois de meia noite. Mas passou, ainda bem. Passou sem eu perceber. Depois que entendi que fazia parte das consultas que eu estava fazendo, gástricas.
Será que a psicanálise explica isso melhor pra mim?

23 de abril de 2008 às 11:58
Lucas disse...

Fantasmas, na maioria das vezes, ao menos pra mim, são como fardos.

E como todos os fardos, devem ser limados de nossas vidas.

Sei que isso pode fugir ao controle, mas enquanto eu puder evitar, não vou ficar "jogando a brincadeira do copo", ou seja, dar margem para que o fardo reapareça pra infernizar a minha vida.

Pode não resolver, mas pelo menos me ajuda a retomar minha vida com tranquilidade, olhar à frente, e não, ficar remoendo e vivendo com base nas lembranças do passado.

Não sei se tem a ver, mas enfim, foi minha interpretação.

Beijos

24 de abril de 2008 às 06:57
Migel - A SEIVA disse...

Em cada sombra nossa existe um fantasma que aplaude ou vaia.

A SEIVA

24 de abril de 2008 às 08:16

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